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No passado, uma escola só para homens

CÂMPUS PELOTAS - 75 ANOS

Ingresso de mulheres ocorreu apenas em 1964, mais de 20 anos depois da criação da Escola Técnica de Pelotas (ETP)
publicado: 01/10/2018 14h30, última modificação: 01/10/2018 15h05

Um dos fatos mais inusitados nesses 75 anos de história do hoje câmpus Pelotas do IFSul, sem dúvida, foi a ausência de estudantes mulheres por um período de mais de duas décadas. Desde a federalização e a criação da então Escola Técnica de Pelotas (ETP), em 1943, apenas meninos ocupavam as salas de aula, um forte reflexo da sociedade patriarcal da época, cujas influências nos aspectos culturais e comportamentais são sentidas até hoje.

“Mesmo que o princípio da igualdade entre os sexos já fosse regra constitucional e princípio expresso no texto da Lei Orgânica de 1942, o ingresso de meninas ainda não se concretizara efetivamente, e a proposição, embora vinda com mais de 20 anos de atraso, ainda assim teve muitas opiniões contrárias”, destaca um dos trechos do livro “Das artes e officios à educação tecnológica: 90 anos de história...”, escrito pela ex-procuradora federal Céres Mari da Silva Meireles e que conta a trajetória da instituição de ensino entre 1917 e 2007, através de um rico acervo fotográfico e documental. Lembrando, aos leitores, que para efeito de comemoração de aniversário da escola, o marco é 11 de outubro de 1943, mas os primeiros registros da educação profissional em Pelotas são de 1917, com a criação da Escola de Artes e Officios.

A Escola Técnica, conforme relatos da obra, contou com meninas somente a partir de 1964, no chamado ginásio industrial, oferecido no turno da noite. Já nos cursos técnicos, as primeiras alunas ingressaram três anos mais tarde, em 1967.

Uma foto da época, com data de 30 de dezembro de 1967, eterniza a formatura de uma das turmas do ginásio industrial noturno. Nela estão registrados para a posteridade nada mais, nada menos do que 30 homens e apenas sete mulheres. Sete pioneiras em um universo de 1,5 mil alunos. Algo inovador para aquele momento histórico, mas que fugia totalmente à tradição da Escola Técnica.

Rótulo

O curso técnico em mecânica, o mais antigo da instituição com 64 anos, ainda é tido por muitos na sociedade como um “curso para homem”, rótulo preconceituoso e equivocado que por décadas afugentou meninas que ousaram a pensar “fora da caixa”.

Prestes a se formar no final do ano, Larissa Zahn sabia exatamente o que viria pela frente quando contrariou os prognósticos do pai e optou pelo curso técnico em mecânica. A estudante de 19 anos se considera uma pessoa vaidosa, mas, dentro do pavilhão do curso, o lado profissional fala mais alto.

“Desde o começo eu tinha consciência do que ia ser. Não vou dizer que a gente faz muita sujeira, mas se tiver que pegar na graxa, como pra fazer a lubrificação, é lógico que você vai sujar a mão. A gente não pode usar a luva por questões de segurança. Uso sapato de segurança e, se precisar sair assim, eu saio sem problema algum. Meu jaleco não é dos mais limpos também. Trabalhar no laboratório de metrologia é uma coisa, a gente sabe que ali vai trabalhar no máximo com vaselina. É um serviço bem mais limpo. Mas a gente tem consciência de que se vai vir para o pavilhão de mecânica, onde você tem que fazer um monte de coisas, você sabe que vai usar óleo, que não é limpo, que o cavaco que sai das peças, se for muito fino, suja a mão. Me considero vaidosa, mas nunca tive problema com isso. Sou vaidosa fora do meu trabalho, aqui eu sei que não vou poder ser dessa forma por questão de segurança, e por questões de trabalho, tem que saber dividir uma coisa da outra, o teu mundo de trabalho da tua vida pessoal. Todas as gurias que trabalham aqui comigo sabem e têm consciência disso”, argumenta.

Feliz pela escolha, Larissa diz que se sente à vontade no curso e que é tratada de igual para igual e com muito respeito por professores e colegas.

“Sabe que me surpreendi bastante? Quando eu entrei aqui, eu sempre pensei, principalmente em relação aos professores, que ia ter um preconceito muito grande, até por serem pessoas mais velhas, não por não terem a mente aberta, mas por serem mais velhas mesmo, por terem vivido em outra época. Eu achei que ia ser um preconceito muito maior, e foi totalmente diferente. Os professores incentivam muito as gurias aqui dentro. Eles não demonstram nenhum preconceito, uma guria é igual a um guri, e sempre foi assim, desde o primeiro semestre, em nenhum momento senti preconceito, nem dos colegas. Dos guris não tenho nada do que reclamar, só elogios, meus colegas são nota mil”, conta a estudante, que reforça o fato de que no curso, entre alunos e professores, não há qualquer tipo de rótulo sobre a questão de gênero.

Situação bem semelhante é a de Tauna Pereira Brauch, 18 anos. Estudante do técnico em eletromecânica, ela entrou no curso apoiada pela família, que já é da área, e afirma que nunca foi desrespeitada em sala de aula.

“A maioria é homem, mas é bem tranquilo. Eles não diferenciam a gente por ser mulher, a gente é apta a fazer o que os meninos fazem, isso é bem legal no curso. Eu achei que poderia ser mais complicado, mas não foi assim, sempre teve bastante respeito de todo mundo”, destaca.

Tecnicamente, Tauna garante que não há qualquer diferença entre homens e mulheres em seu curso e que existe um ambiente de muita amizade e cooperação.

“Me sinto tão capaz quanto os meninos, de igual pra igual, não são melhores que eu e eu também não me torno melhor em nada por ser mulher. Quando a gente não consegue fazer alguma coisa, um ajuda o outro, os meninos pedem a nossa ajuda, nós pedimos a ajuda deles, não tem isso de menino não querer ajuda de menina”, assegura.

Imagem estereotipada

Atualmente, o curso técnico em mecânica conta com 238 alunos matriculados, nas formas concomitante e subsequente. Desse total, 43 são mulheres (18,06%). Na eletromecânica, outro que carrega o rótulo de “curso para homens”, são 323 alunos do integrado, concomitante e subsequente. Quarenta e quatro deles, meninas (13,62%). Apesar da predominância masculina, os dois cursos estão longe de serem reduto de preconceito e discriminação, pelo menos no que diz respeito ao corpo docente e discente.

“É a mídia e a sociedade que colocam esse rótulo. A mídia retrata o mecânico como burro, sujo, que fala errado, essa é a imagem que é vendida”, critica o professor Ricardo Carrilho, coordenador do curso técnico em mecânica.

Carrilho observa que o preconceito familiar em relação ao curso vem diminuindo, mas acredita que há casos em que a pressão que vem de casa leva as meninas a desistirem de seguir adiante ou até mesmo nem ingressarem.

“A questão do preconceito familiar tem reduzido, embora já tenha acontecido de mães virem aqui visitar a área e começar a chorar ao ver as máquinas ligadas, imaginando o que pode acontecer com a sua filha. Nós tivemos uma aluna que ela teve que brigar com a mãe em casa para estudar aqui, a mãe não queria, não importava quais portas iriam se abrir”, lamenta.

Na opinião do professor, as meninas do curso têm um grande potencial e são bastante caprichosas em suas tarefas, sobretudo nas atividades práticas de oficina.

“O zelo com o equipamento e a capacidade de se organizar são notórios, elas conseguem fazer mais coisas ao mesmo tempo. A qualidade das peças também tende a ser superior. Soldas feitas por elas são as melhores, melhores que as minhas, inclusive. É uma questão de destreza manual, não sei se tem algo biológico que comprove, mas são mais caprichosas e mais organizadas”, reforça.

Sobre o ingresso de meninas, o professor Velington Neumann, coordenador do curso técnico em eletromecânica, afirma que o índice atual de 13,62% já foi bem menor em anos anteriores. Ele não concorda que a eletromecânica seja um “curso de homens” e que a decisão das mulheres, por cursar ou não, está muito mais relacionada ao conteúdo programático do curso.

“Eu acho que é uma questão da própria escolha das meninas, de não querer ir para a área de manutenção, com instalação de motores. Na hora de escolher, vê que o curso tem isso e não vem. Mas não é um ´curso de homens´”, justifica.

Para o professor Amilton Moraes, da eletromecânica, a tecnologia empregada hoje na área pode jogar a favor do curso e ser um atrativo para as meninas.

“Hoje temos alunos executando atividades de manutenção e não necessariamente existe a necessidade do esforço mais braçal. Com o avanço tecnológico, quem faz força é a máquina e não mais as pessoas. Gradativamente, vai se desmitificando essa necessidade da robustez. Nós trabalhamos com atividades práticas de oficina, e não foi em um e nem em dois momentos que os melhores trabalhos eram de meninas”, ressalta.

Moraes lembra que várias alunas da eletromecânica já foram destaques em suas turmas por conta da qualidade dos trabalhos realizados. A razão do alto desempenho, segundo ele, está na motivação.

“Em vários semestres, a gente observa que os destaques são femininos. Por que vemos isso? Porque quando uma menina vem para um curso rotulado como masculinizado, é porque ela tem uma grande vontade de vir pra cá, ela vem consciente, e por vir consciente, ela se mobiliza, se motiva mais”, observa.

Ações afirmativas

Cintia Müller Leal, professora e responsável pelo Núcleo de Gênero e Diversidade (Nuged) do câmpus Pelotas, não tem dúvidas de que a pressão da sociedade brasileira, que carrega uma pesada influência do modelo patriarcal, exerce papel fundamental na construção e imposição de rótulos e imagens para a mulher.

“A mulher é muito capaz, mas a normatização colocada pela sociedade, na qual o homem é a figura representativa do poder primário na família e no sistema social como um todo, puxa essa mulher para trás, desvalorizando-a. Não à toa, elas ainda são a minoria na política, na gestão de empresas e em muitos outros setores”, constata.

Cíntia chama atenção para o fato de que, já na infância, questões vocacionais, aptidões e habilidades da mulher são sufocadas pela própria família, num processo que terá consequências muitas vezes danosas para o futuro dessas meninas.

“Há estímulos diferentes para meninos e meninas. Isso vem de berço, é fator cultural. Quando crianças, por exemplo, meninos ganham carrinhos, bola de futebol, kit de ferramentas. Já as meninas são presenteadas com bonecas, panelinhas, fogãozinho, entre outros. Sem falar na questão das cores: azul é de menino; e rosa, de menina”, explica.

Conforme a professora, o Nuged foi implantado em 2015 para, entre outras atribuições, desconstruir essa normatização e imposição social. Juntamente com outros núcleos de ações afirmativas do câmpus, como o Neabi (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas) e o Napne (Núcleo de Apoio às Pessoas com Necessidades Específicas), vem desenvolvendo diversas ações de promoção dos direitos da mulher, comunidade LGBTI+ e de todo um elenco que compõe o universo da diferença, com o objetivo de eliminar a discriminação, além de incentivar a integração social, educacional, política, econômica e cultural desses grupos.

Iniciativas como rodas de conversa, curso de formação para alunos e servidores e desenvolvimento de jogos didáticos para trabalhar questões de gênero e sexualidade em sala de aula e eventos são algumas das atividades já realizadas pelo Nuged, que mantém troca permanente de informações com núcleos coirmãos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), reforçando temáticas de gênero, sexualidade e identidade.